quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A Negação do Irreal



“Alguns observadores modernos da outra-mundanidade talvez questionem se, nesse aspecto, o budismo não teria chegado mais perto de revelar a estranha verdade que muitos dos grandes filósofos e teólogos se dedicaram a ensinar: o culto da não existência; embora de uma não existência criada para parecer mais ‘real’ e emocionalmente mais satisfatória graças a uma ênfase em sua liberdade com relação aos defeitos e limitações particulares — a relatividade, os conflitos lógicos internos, a carência de finalidade para o pensamento e o desejo — que caracterizam todos os objetos concretos sobre os quais podemos pensar de maneira absoluta. Para nosso propósito não é necessário tentar responder aqui a essa grande questão. O certo é que tais filósofos sempre acreditaram estar fazendo exatamente o contrário disso.
Mas nenhuma outra-mundanidade, seja integral ou limitada, pode, como pareceria, fazer algo quanto ao fato de que há um “este-mundo” do qual é preciso evadir-se; menos ainda ela pode justificar ou explicar o ser de um tal mundo ou aquilo que ela nega de qualquer característica particular ou aspecto da existência empírica. Seu recurso natural é, portanto, como no Vedanta, recorrer ao expediente do ilusionismo. Mas chamar as características da experiência real de ‘ilusão’, de não-existência vazia, apesar de ser uma espécie de poesia que tem um pathos metafísico bastante potente, é, filosoficamente falando, com franqueza o mais extremo disparate. Essas características podem, de uma maneira concebível, ser ‘irreais’, no sentido em que elas não têm existência ou contrapartidas em ordem objetiva fora da consciência daqueles que as experimentam. Mas falar delas como absolutamente irreais, enquanto se experimenta a existência delas em si mesmo e se presume isso na de outros homens e enquanto se as apontam expressamente como imperfeições a serem transcendidas e males a serem vencidos, é obviamente negar e afirmar a mesma proposição ao mesmo tempo. E uma autocontradição não deixa de ser sem sentido por parecer sublime.”

LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. São Paulo: Editora Palíndromo, 2005. pp.37-38.   

sexta-feira, 5 de março de 2010

Guerras Industriais


"— Terei entendido bem? — perguntou o professor Obnubile. — O quê! Vós, uma nação industrial, engajados em todas essas guerras!
— Claro — responde o intérprete. — São guerras industriais. Os povos que não têm comércio nem indústria não têm que fazer a guerra; mas um povo de negócios é obrigado a uma política de conquistas. O número das nossas guerras aumenta necessariamente com a nossa atividade produtora. Do momento em que uma indústria já não tenha como escoar os seus produtos, faz-se mister que uma guerra lhe abra novas demandas. Assim é que tivemos esse ano uma guerra de carvão, uma guerra de cobre e uma guerra de algodão. Na Terceira Zelândia, exterminamos dois terços da população para obrigar os restantes a comprar-nos guarda-sóis e suspensórios.
Nesse instante, um homem corpulento que estivera sentado no centro da assembléia subiu à tribuna.
— Requeiro — disse ele — uma guerra contra o governo da República de Esmeralda, que disputa insolentemente aos nossos porcos a hegemonia dos presuntos e salsichas em todos os mercados do mundo.
— Quem é aquele legislador? — perguntou o doutor Obnubile.
— É um negociante de porcos.
— Não há contestação? — disse o presidente. — Ponho a proposta em votação.
A guerra contra a República de Esmeralda foi votada a mãos levantadas por esmagadora maioria.
— Como? — disse Obnubile ao intérprete. — Os senhores votam uma guerra com tanta rapidez e com tanta indiferença?...
— Ora, é uma guerra sem importância, que não custará mais de oito milhões de dólares.
— E homens...
Os homens estão computados nos oito milhões de dólares.
Então o doutor Obnubile pôs a cabeça entre as mãos e pensou amargamente:
'Já que a riqueza e a civilização comportam tantas causas de guerra como a pobreza e a barbárie, já que a loucura e a maldade dos homens é incurável, só resta uma boa ação a cumprir. O sábio ajuntará bastante dinamite para fazer saltar este planeta. Quando ele rolar em pedaços através do espaço, um melhoramento imperceptível ter-se-á realizado no universo, e uma satisfação será dada à consciência universal, que por sinal não existe.'"

FRANCE, Anatole. A Ilha dos Pingüins. Rio de Janeiro: Ediouro, 198o. pp.128-129.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Crença no Estado

"Acontece então, inevitavelmente, que, à medida em que as pessoas vão se tornando mais estúpidas e mais descuidadas, a administração [o governo] vai se tornando mais poderosa, e vice-versa. De modo geral, as culturas que estudamos nas melancólicas páginas da história são misturas patéticas onde ainda é possível, muitas vezes, reconhecer os ingredientes que as compõe. Há sempre uma certa quantidade de funções que vivem ou sobrevivem — o pão continua a ser feito, as artes e as ciências ainda interessam a alguns poucos, etc., mas, na maior parte das vezes, observamos o fracasso de qualquer funcionamento social ativo que foi impedido, pervertido, esgotado, paternalizado e explorado por um sistema de poder e de administração que esvazia os meios e toma decisões ab extra. E o pior é que todos acreditam que se não fosse assim não haveria sociedade. Se não houvesse licenças para os casamentos nem taxas a pagar, ninguém poderia casar-se e não nasceriam crianças; se não existisse o pedágio, não haveria pontes; se não houvesse bolsas de estudos para universitários, não haveria cultura; se a usura e a Lei de Ferro dos Salários não existissem, não haveria capital; se não houvesse inflação nos preços dos medicamentos, não haveria mais pesquisa científica. E quando uma sociedade adota esse tipo de raciocínio, de que todas as atividades exigem licenças, assinaturas e a decisão de um poder abstrato, inevitavelmente acontece que qualquer homem dotado de ambição deseja o Poder, e qualquer nação luta para tornar-se o Grande Poder. E quanto maior for a ânsia de poder de alguns, mais necessário parecerá aos outros competir ou submeter-se, para que possam sobreviver — e estarão certos. Muitos se tornam cruéis e impiedosos, e outros vivem amedrontados."


GOODMAN, Paul. A Política Normal e a Psicologia do Poder. in WOODCOCK, George. Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: L&PM, 1981. p.87.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A Fuga do Mundo


"Um número cada vez maior de pessoas nos países do mundo ocidental, o qual encarou desde o declínio do mundo antigo a liberdade em relação à política como uma das liberdades básicas, utiliza tal liberdade e se retira do mundo e de suas obrigações junto a ele. Essa retirada do mundo não prejudica necessariamente o indivíduo; ele pode inclusive cultivar grandes talentos ao ponto da genialidade e assim, através de um rodeio, ser novamente útil ao mundo. Mas, a cada uma dessas retiradas, ocorre uma perda quase demonstrável para o mundo; o que se perde é o espaço intermediário específico e geralmente insubstituível que teria se formado entre esse indivíduo e seus companheiros homens.
(...) De todas as liberdades específicas que podem ocorrer em nossas mentes quando ouvimos a palavra "liberdade", a liberdade de movimento é historicamente a mais antiga e também a mais elementar. Sermos capazes de partir para onde quisermos é o sinal prototípico de sermos livres, assim como a limitação da liberdade de movimento, desde tempos imemoriais, tem sido a pré-condição da escravidão. A liberdade de movimento é também a condição indispensável para a ação, e é na ação que os homens primeiramente experimentam a liberdade no mundo.
(...) A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por assim dizer, procurar por trás deles como se o mundo fosse apenas uma fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder...
(...) A questão é: quanta realidade se deve reter mesmo num mundo que se tornou inumano, se não quisermos que a humanidade se reduza a uma palavra vazia ou a um fantasma? Ou, para colocá-la de outra forma, em que medida ainda temos alguma obrigação para com o mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele?"


ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp.11,12;16;19;31.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Mulheres e Amigos

"Quando Kama [o amor, o prazer, a satisfação sensual] é praticado pelos homens das quatro castas segundo as regras da Sagrada Escritura (isto é, em matrimônio legal) com virgens de sua própria casta, torna-se um meio de adquirir prole legítima e bom nome, e não se opõe ao costume do mundo. Pelo contrário, a prática de Kama com mulheres de castas superiores e com as mulheres que já foram gozadas por outros, embora da mesma casta, é proibida. Mas a prática de Kama com mulheres de castas inferiores, mulheres expulsas da própria casta, mulheres públicas e mulheres casadas duas vezes não é estimulada nem proibida. O objetivo da prática de Kama com tais mulheres é apenas o prazer.
(...) As mulheres seguintes não devem ser desfrutadas:

A leprosa
A lunática
A expulsa de sua casta
A que revela segredos
A que expressa publicamente o desejo de relações sexuais
A muito branca
A muito preta
A que cheira mal
A que é parente próxima
A que é amiga
A que leva vida de ascetismo
E, finalmente, a esposa de um conhecido, de um amigo, de um brâmane culto, e do rei.

Os seguidores de Babhravya dizem que qualquer mulher que tenha sido desfrutada por cinco homens é pessoa adequada a ser desfrutada [o grifo é meu]. Mas Gonikaputra acha que, mesmo quando isso acontece, as esposas de um conhecido, de um brâmane culto e do rei devem constituir exceção.

São os seguintes os gêneros de amigos:

Aquele com quem se brincou na infância
Aquele a quem se está ligado por um favor
O que tem as mesmas inclinações e gosta das mesmas coisas
O que é companheiro de estudos
O que conhece nossos segredos e faltas, e cujos segredos e faltas também conhecemos
O filho das amas
Aquele que é criado junto conosco
O amigo hereditário

Tais amigos devem possuir as seguintes qualidades:

Dizer a verdade
Não se modificarem com o tempo
Serem favoráveis aos nossos objetivos
Serem constantes
Serem livres de cobiça
Não serem influenciáveis
Discretos"

VATSYAYANA, Mallanaga. Kama Sutra, Traduzido da Versão Clássica de Richard Burton. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. pp.83;85-86.
  

terça-feira, 26 de maio de 2009

O Princípio Anarquista

"Observai à vossa volta. O que restou de todos os partidos que outrora se anunciaram como partidos eminentemente revolucionários? — Só dois partidos estão em oposição: o partido da coerção e o partido da liberdade; os anarquistas e, contra eles, todos os outros partidos, qualquer que seja sua etiqueta.
É que, contra todos esses partidos, os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o princípio da liberdade. Todos os outros gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma do açoite. Se eles gritam ‘abaixo a corda de cânhamo da forca’, é para substituí-la pelo cordão de seda, aplicado no dorso. Sem açoite, sem coerção, de um modo ou de outro, sem o açoite do salário ou da fome, sem aquele do juiz ou do policial, sem aquele da punição sob uma forma ou outra, eles não podem conceber a sociedade. Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, salário e fome nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se há progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é conquistado contra esses instrumentos, e não por eles.”


KROPOTKIN, Pyotr Alexeyevich. O Princípio Anarquista e Outros Ensaios. São Paulo: Hedra, 2007. p36.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Quanto vale a sua vida?

(Texto adaptado)   

     Diante dessa pergunta a maioria das pessoas responderia: "—Não tem preço!". Afinal, como é possível avaliar uma vida humana? Um indivíduo que escreveu um livro, plantou uma árvore e teve um filho, levou uma vida mais valiosa do que aquele que não fez nenhuma dessas coisas? Para uns, uma vida valiosa é uma vida virtuosa (e o próprio conceito de virtude é relativo); para outros, o valor da vida está, simplesmente, na felicidade.

     Qual é, então, o valor da vida? Impossível responder, se pensarmos em critérios subjetivos. Mas há um critério objetivo que pode ser usado: o TEMPO.

     O tempo passa da mesma forma para todas as pessoas (ao menos para todas aquelas que não tem massa corpórea de proporções estelares, nem se deslocam a velocidades próximas da luz...) e possui também um valor pecuniário — tanto possui, que o vendemos! Ao vendermos nosso tempo — nosso Tempo de Vida — alienamos uma parcela de nossa existência.

     A relação de compra e venda do tempo é o que chamamos TRABALHO.

     Alguém poderia dizer: "—Não, o trabalho não é a comercialização do tempo, mas sim a compra, por parte da empresa, da força-de-trabalho do empregado (suas habilidades técnicas, aptidões intelectuais, etc.)".

     Nada mais falso. Quem nunca teve "dias-de-cão" no trabalho? Aqueles dias em que você começa a trabalhar assim que chega na empresa, e fica até mais tarde (sem contar hora-extra), mal tendo tempo para almoçar? E aqueles dias em que não há nada para fazer, quando você resolve dar uma geral na mesa, ler e-mails antigos, ou simplesmente fazer uma visita a outra área, só para ver se o pessoal também está de bobeira?

     Da mesma forma, não há momentos em que você precisa se esforçar ao máximo para resolver uma questão no trabalho, torrar até o último neurônio para dar conta do recado, e outros momentos em que o serviço é tão simples, tão fácil, que você pensa que poderia ser substituído por um chimpanzé?

     Independentemente da variação momentânea do seu serviço, quer seja em quantidade, quer seja em complexidade, o salário não muda. Você recebe pelas oito horas de trabalho diário. Não está alugando seus braços, nem seu cérebro. Você está vendendo seu Tempo de Vida.

     E está vendendo mesmo: ele não será devolvido depois, quando você se aposentar, ou sair da empresa...

     Tomando os dados fornecidos pelo IBGE podemos criar um exemplo hipotético: a expectativa média de vida do brasileiro é de 72 (setenta e dois) anos e a renda per capita mensal é de R$ 1.030,00 (mil e trinta reais); considerando uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, cada trabalhador recebe R$ 5,72 (cinco reais e setenta e dois centavos) por hora; se ao invés de vender oito horas diárias de sua vida, durante trinta, trinta e cinco anos, o brasileiro médio vendesse todos os seus minutos, do nascimento até a morte, receberia o valor de R$ 3.610.189,44 (três milhões seiscentos e dez mil cento e oitenta e nove reais e quarenta e quatro centavos).

     Assim, para saber em quanto está "avaliada" a sua vida, pelo menos até o momento, e comparar seu valor com a média dos brasileiros, basta fazer algumas contas simples: calcule sua expectativa de vida através deste link  http://www.kwebbel.net/morte/ e substitua o valor na seguinte fórmula

"[Valor da Sua Vida] = [Sua Expectativa de Vida] X [Seu Salário Mensal] X [48,7]".  

     Pronto! Esse é o valor da sua vida de acordo com o seu trabalho...

     Muito pouco, não? Não importa se o resultado foi um milhão, cinco milhões ou cem milhões. É muito pouco para quem considera que a vida humana não tem preço.

     Parece-me que não há forma mais evidente de demonstrar que o trabalho não dignifica ninguém, muito pelo contrário. O trabalho reifica ("coisifica") o homem, transformando seu Tempo de Vida em uma mercadoria, vendida infinitamente mais barato do que realmente vale.

     Houve uma época em que a humanidade dividia-se em dois grupos: os Senhores e os escravos. Os Senhores eram aqueles que não trabalhavam, nunca, pois eram donos de todo o seu Tempo de Vida, e donos também de todo o Tempo de Vida dos escravos; estes, por sua vez, não eram donos de nada, nem de si mesmos, e trabalhavam para sustentar a si próprios e aos Senhores.

     Felizmente, a atrocidade que é a escravidão stricto sensu foi (quase) abolida, e hoje o mundo está dividido em dois outros grupos: os que vendem uma parte do seu Tempo de Vida — a quem chamamos empregados —, e os que compram esse tempo — a quem chamamos empregadores.

     Na progressão para um mundo mais justo, em que cada indivíduo destaque-se pelo que é, e não pelo que tem nem por aquilo que herdou, para um mundo em que todo e qualquer indivíduo nasça em igualdade de condições (leia-se oportunidades) aos demais, a tendência é que cada um precise vender cada vez menos tempo de sua vida. Tornar-se senhor de todo o seu tempo, esse é o objetivo almejado.

     E o que o Homem fará quando não mais precisar trabalhar? Viverá ocioso?

     Bem, isso irá depender de cada um, mas viver ocioso e viver o Ócio não é a mesma coisa! Os Senhores da antiguidade viviam o Ócio, ou seja, não gastavam o tempo de sua vida fazendo coisas por obrigação, não eram obrigados a nada. Eles dedicavam-se, porque podiam e queriam, basicamente a duas atividades: a Filosofia e a Política. A Filosofia permitia-lhes entender melhor o mundo e a si mesmos, e através da Política eles estabeleciam a vida em comum. (Então, será que não é pelo fato de que todos somos educados para o trabalho que a Filosofia anda tão desprezada, e a Política virou apenas mais uma forma de ganhar dinheiro?)

     Mas alguém ainda poderia perguntar: "—E se ninguém trabalha, como serão produzidos os bens materiais?". Realmente é difícil imaginar um mundo em que ninguém trabalhe nunca, mas não é impossível. E se o trabalho não pode ser completamente abolido, é certo que pode ser drasticamente reduzido; o caminho para essa redução é a TECNOLOGIA.

     Quando não existia tecnologia alguma, e todos os bens materiais eram produzidos por escravos, o trabalho ocorria em tempo integral; os escravos mal paravam para satisfazer suas necessidades fisiológicas (dormir, comer, etc.); começavam a trabalhar ainda crianças e só paravam ao morrer, geralmente antes dos trinta anos. Posteriormente, durante o período feudal, quando a tecnologia agrícola foi aperfeiçoada e os escravos passaram a ser chamados de servos, a jornada reduziu-se um pouco. Quando surge a burguesia, a classe especializada dos comerciantes, o tempo trabalhado reduziu-se ainda mais. No início da revolução industrial — a grande revolução tecnológica —, a jornada de trabalho durava cerca de dezesseis horas por dia, sem férias nem descanso semanal, mas já então os trabalhadores eram empregados e, como classe trabalhadora (ou proletariado), passaram a organizar-se; através dos sindicatos, reivindicaram e gradualmente conseguiram a redução da jornada para doze horas, depois para oito horas diárias, depois o descanso semanal... Se a tecnologia estivesse a serviço de todos, se fosse um bem público e não um instrumento de lucro para uns poucos, mesmo hoje o Tempo de Vida que cada empregado precisa vender seria bem menor.

     Mas podemos observar que o progresso continua, pois nos países mais desenvolvidos a jornada de trabalho padrão é de seis horas, e a jornada de quatro horas não se limita a quem não pode trabalhar mais. As pessoas ganham mais e produzem mais, trabalhando menos, porque tem a tecnologia a seu favor e porque os empregadores (os chamados "detentores dos meios de produção") possuem uma preocupação social maior do que o seu desejo de lucro.

     Certamente estamos muito, muito longe de nos libertarmos do trabalho. Mas não podemos perder de vista que essa é uma busca tão antiga quanto a própria humanidade, e que, se os nossos antepassados nos legaram um mundo melhor do que aquele no qual viveram, um mundo em que TEMOS TEMPO para fazer aquilo que queremos e achamos certo, então nós podemos e devemos deixar um mundo melhor para os nossos descendentes: um mundo em que eles tenham MAIS TEMPO DE VIDA. 

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Educação e Nutrição

"Vamos examinar o caso da educação. Antigamente, pensava-se que a educação deveria começar por volta dos oito anos, com o aprendizado das declinações latinas; o que aconteceria antes era considerado sem importância. Esse ponto de vista, na essência, parece ainda predominante no Partido Trabalhista, que quando no poder, interessou-se muito mais em aperfeiçoar a educação após os quatorze anos do que criar escolas maternais. Com a concentração na educação tardia surgiu um certo pessimismo quanto aos seus poderes: pensava-se que tudo o que ela poderia realizar seria preparar um homem para ganhar seu sustento. No entanto, a tendência científica atribui mais poder à educação do que no passado, só que começando muito cedo. Os psicanalistas a iniciariam ao nascer; os biólogos, ainda mais cedo. É possível educar um peixe a ter um olho no meio em vez de dois olhos, um de cada lado (Jennings, Prometheus, p. 60). Mas para obter esse resultado é preciso começar bem antes do seu nascimento. Até agora, existem dificuldades em relação à educação pré-natal dos mamíferos, porém é provável que sejam superadas.
Contudo, você poderá objetar que estou usando o termo 'educação' em um sentido muito bizarro. O que há em comum entre deformar um peixe e ensinar a um menino gramática latina? Devo dizer que me parecem muito similares: ambos são danos desumanos infligidos pelo prazer da experimentação. Talvez, entretanto, isso dificilmente seja uma definição da educação. A essência da educação é que há uma mudança (outra que não a morte) efetuada em um organismo para satisfazer às aspirações do executor. É claro, o executante diz que seu desejo é proporcionar uma condição melhor para o aluno, mas essa afirmação não representa qualquer fato verificável de modo objetivo.
(...) Existem dois métodos principais para a educação infantil prematura: um por meio de químicas e o outro por sugestão. Quando digo 'químicas' talvez seja visto como um materialista indevido. No entanto, ninguém pensaria isso se eu houvesse falado 'É claro que uma mãe cuidadosa daria ao bebê uma dieta mais completa disponível', que é apenas uma maneira mais longa de dizer a mesma coisa. Contudo, estou interessado em possibilidades mais ou menos sensacionais. É possível constatar que o acréscimo de remédios adequados à dieta, ou a injeção intravenosa de substâncias corretas aumentarão a inteligência ou modificarão a natureza emocional. Todos conhecemos a conexão entre o retardo mental grave e a ausência de iodo. Talvez vejamos que os homens inteligentes foram aqueles que, na tenra infância, ingeriram pequenas quantidades de algum composto raro em sua dieta devido à falta de limpeza nos potes e panelas. Ou talvez a dieta da mãe durante a gestação tenha sido o fator decisivo. Desconheço esse assunto; somente observo que sabemos mais sobre a educação de salamandras do que sobre a dos seres humanos, sobretudo porque não imaginamos que salamandras têm almas."


RUSSELL, Bertrand. Ensaios Céticos. Porto Alegre: L&PM, 2008. pp.189-191.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A Condição do Trabalho

"(...)Mais próximo e talvez igualmente decisivo é outro evento não menos ameaçador: o advento da automação, que dentro de algumas décadas provavelmente esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. Mais uma vez, trata-se de um aspecto fundamental da condição humana; mas a rebelião contra esse aspecto, o desejo de libertação das 'fadigas e penas' do trabalho é tão antigo quanto a história de que se tem registro. Por si, a isenção do trabalho não é novidade: já foi um dos mais arraigados privilégios de uma minoria. Neste segundo caso, parece que o progresso científico e as conquistas da técnica serviram apenas para a realização de algo com que todas as eras anteriores sonharam e nenhuma pôde realizar.
Mas isto é assim apenas na aparência. A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fada, chega num instante em que só pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma sociedade de trabalhadores, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro desta sociedade, que é igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, já não existem classes nem uma aristocracia de natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem. Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade; e, entre os intelectuais, somente alguns indivíduos isolados consideram ainda o que fazem em termos de trabalho, e não como meio de ganhar o próprio sustento. O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior."

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. pp.12,13.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Desejo de aprender

"É óbvio que a maioria das crianças, se fosse deixada para se conduzir por si mesma, não aprenderia a ler ou escrever, e cresceria menos adaptada às circunstâncias da vida. Nesse sentido, é preciso haver instituições educacionais, e as crianças devem se submeter, até um certo limite, à autoridade. Porém, em vista do fato de que nenhuma autoridade pode ser inteiramente confiável, é necessário ter como meta a menor autoridade possível, e tentar pensar em maneiras pelas quais os desejos naturais e impulsos dos jovens possam ser utilizados na educação. Isso é mais factível do que julgamos, pois, afinal de contas, a vontade de adquirir conhecimento é natural para a maioria dos jovens. O pedagogo tradicional, ao possuir um conhecimento sem valor para compartilhar e desprovido totalmente da capacidade de transmití-lo, imaginou que os jovens tinham horror intrínseco à instrução, mas nesse caso ele se enganou por não ter percebido suas próprias imperfeições. Há um conto encantador de Tchekhov sobre um homem que tentou ensinar um gatinho a caçar ratos. Quando ele não corria atrás dos ratos, o homem batia nele e o resultado foi que mesmo já adulto o gato ficava aterrorizado na presença de um rato. 'Esse é o homem', acrescenta Tchekhov, 'que me ensinou latim.' Os gatos ensinam seus filhotes a caçarem ratos, porém esperam até que o instinto deles tenha despertado. Então os gatinhos concordam com suas mamães que o conhecimento merece ser adquirido, de modo que a disciplina não é necessária." 

RUSSELL, Bertrand. Ensaios Céticos. Porto Alegre: L&PM, 2008. pp.176,177.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O Mal que os Homens Bons fazem

"Consideremos, novamente, a questão da doença venérea. Sabe-se que ela pode ser quase inteiramente prevenida por precauções adequadas tomadas previamente, mas, devido às atividades dos homens bons, esse conhecimento é disseminado o menos possível, e todos os tipos de obstáculos são colocados à sua utilização. Por conseguinte, o pecado ainda assegura sua punição 'natural' e as crianças continuam sendo castigadas pelos pecados de seus pais, de acordo com o preceito bíblico. Seria terrível se acontecesse o contrário, pois, se o pecado não recebesse punição, poderia haver pessoas abandonadas a seus impulsos a fim de fingir que o pecado não era mais pecado, e se o castigo não fosse aplicado ao inocente, não pareceria tão terrível. Assim, como devemos ser gratos aos homens bons que asseguram que as rígidas leis de retribuição decretadas pela Natureza durante nossos dias de ignorância ainda podem ser postas para funcionar, a despeito do conhecimento ímpio adquirido de modo descuidado pelos cientistas."

RUSSELL, Bertrand. Ensaios Céticos. Porto Alegre: L&PM, 2008. p.109.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Weber e a moral do trabalho

"Na verdade, essa idéia tão peculiar do dever do indivíduo em relação à carreira, que atualmente nos é familiar, mas na realidade tão pouco óbvia, é o que há de mais característico na ética social da cultura capitalista e, em certo sentido, constitui sua base fundamental. É uma obrigação que se supõe que o indivíduo sinta, e de fato sente, em relação ao conteúdo de sua atividade profissional, não importa qual seja, particularmente se ela se manifesta como uma utilização de suas capacidades pessoais ou apenas de suas posses materiais (capital)."

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2007. p.52.