segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A Fuga do Mundo


"Um número cada vez maior de pessoas nos países do mundo ocidental, o qual encarou desde o declínio do mundo antigo a liberdade em relação à política como uma das liberdades básicas, utiliza tal liberdade e se retira do mundo e de suas obrigações junto a ele. Essa retirada do mundo não prejudica necessariamente o indivíduo; ele pode inclusive cultivar grandes talentos ao ponto da genialidade e assim, através de um rodeio, ser novamente útil ao mundo. Mas, a cada uma dessas retiradas, ocorre uma perda quase demonstrável para o mundo; o que se perde é o espaço intermediário específico e geralmente insubstituível que teria se formado entre esse indivíduo e seus companheiros homens.
(...) De todas as liberdades específicas que podem ocorrer em nossas mentes quando ouvimos a palavra "liberdade", a liberdade de movimento é historicamente a mais antiga e também a mais elementar. Sermos capazes de partir para onde quisermos é o sinal prototípico de sermos livres, assim como a limitação da liberdade de movimento, desde tempos imemoriais, tem sido a pré-condição da escravidão. A liberdade de movimento é também a condição indispensável para a ação, e é na ação que os homens primeiramente experimentam a liberdade no mundo.
(...) A história conhece muitos períodos de tempos sombrios, em que o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal. Os que viveram em tempos tais, e neles se formaram, provavelmente sempre se inclinaram a desprezar o mundo e o âmbito público, a ignorá-los o máximo possível ou mesmo a ultrapassá-los e, por assim dizer, procurar por trás deles como se o mundo fosse apenas uma fachada por trás da qual as pessoas pudessem se esconder...
(...) A questão é: quanta realidade se deve reter mesmo num mundo que se tornou inumano, se não quisermos que a humanidade se reduza a uma palavra vazia ou a um fantasma? Ou, para colocá-la de outra forma, em que medida ainda temos alguma obrigação para com o mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele?"


ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp.11,12;16;19;31.

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